O esvaziamento da política externa brasileira para a África, relegada ao segundo plano após ser tratada como prioridade nos anos Lula (2003-2010), abriu caminho para o avanço de igrejas evangélicas no continente.
Com o apoio do governo Jair Bolsonaro, congressistas ligados a grupos neopentecostais vêm ocupando espaços para liderar a agenda do Brasil com países africanos, antes influenciada fortemente por empreiteiras golpeadas pela Lava Jato.
A investida busca facilitar a penetração de igrejas e missionários brasileiros nessas nações e se alinha com a nova postura do Ministério das Relações Exteriores, que em fóruns internacionais passou a defender bandeiras como a oposição ao aborto e o combate à perseguição de cristãos.
-
Pastores da Universal em Angola rompem com Edir Macedo e pedem expulsão de bispos brasileiros
-
Revolta contra Igreja Universal gera morte e crise diplomática em país africano
-
Por que igrejas evangélicas ganharam tanto peso na política da América Latina? Especialista aponta 5 fatores
O movimento, porém, enfrenta resistências em alguns países africanos, onde missionários brasileiros — particularmente os ligados à Igreja Universal do Reino de Deus — têm enfrentado escândalos e problemas na Justiça.
Grupos Parlamentares de Amizade
A ofensiva evangélica na África é capitaneada pela bancada religiosa no Congresso. Em uma de suas frentes de atuação, deputados federais evangélicos passaram a presidir sete dos oito grupos parlamentares de amizade entre o Brasil e nações africanas.
PROPAGANDA
Esses grupos têm o objetivo de aproximar o Brasil de nações estrangeiras e influenciar a agenda bilateral. É comum que o Executivo recorra aos grupos para tirar do papel acordos assinados com os países.
Deputados ligados à Universal lideram os grupos responsáveis por Angola, Cabo Verde, Moçambique, Camarões e Namíbia, e propuseram a criação de um grupo para o Malauí.
Um deputado da Assembleia de Deus preside o grupo que trata do Marrocos, e um congressista da Igreja Internacional da Graça de Deus está encarregado pelo Quênia. A exceção é a África do Sul, cujo grupo é presidido pelo deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), sem laços com igrejas.
Direito de imagemIURD-DIVULGAÇÃOImage caption
Defesa, cooperação técnica e ajuda humanitária
Nos últimos anos, a atuação da bancada evangélica em relação a nações africanas vem extrapolando assuntos religiosos, expondo um papel cada vez mais diversificado nas relações com o continente.
Deputados do grupo trabalharam pela aprovação de acordos entre o Brasil e países africanos nas áreas de defesa, educação, cooperação técnica e serviços aéreos, e cobraram o governo a ampliar a ajuda humanitária ao continente.
Um dos congressistas engajados na ofensiva é o deputado federal Marco Feliciano (sem partido-SP). Fundador da Catedral do Avivamento, filiada à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, Feliciano teve o primeiro contato com a África nos anos 1990, quando atuou como missionário em Angola.
Ele diz à BBC News Brasil que a relação dos governos anteriores com líderes religiosos era de “mera tolerância”, ao passo que hoje há total sintonia.
“O governo Bolsonaro é um governo que se declara temente a Deus, em conformidade com o mais profundo sentimento da nacionalidade brasileira”, afirma Feliciano.
Num sinal de alinhamento com os evangélicos quanto à política para a África, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, viajou no início deste mês a cinco países africanos acompanhado de três congressistas, dois deles pastores e membros da bancada: o próprio Feliciano e o deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA). Completava a comitiva o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ).
Direito de imagemGIDEÕES MISSIONÁRIOS DE ÚLTIMA HORAImage caption
Feliciano diz que a viagem — na qual o grupo passou por Angola, Costa do Marfim, Nigéria, Cabo Verde e Senegal — foi “muito produtiva” e envolveu debates sobre economia, defesa, segurança e valores morais.
Ele diz que seu maior interesse em relação ao continente diz respeito à religião. “Hoje a África é o local de maior expansão do cristianismo no mundo, isso merece minha especial atenção”, afirma.
Na passagem pela capital angolana, Luanda, Feliciano foi tratado como celebridade na Igreja Catedral de Adoração e Promessa, ligada à Assembleia de Deus, onde pregou por mais de uma hora. Em um templo com capacidade para 5 mil pessoas, Feliciano chorou ao ser apresentado pelo pastor angolano Esmael Sebastião como “uma das pessoas mais influentes da nossa geração”.
Ovacionado pelos fiéis, o deputado disse que a igreja havia mudado muito desde sua visita anterior. “Vinte anos atrás, eu tinha que jogar fogo no povo, e agora é o povo que joga fogo em mim aqui”, afirmou, inflamando ainda mais a multidão.
A Assembleia de Deus é uma das várias igrejas brasileiras operantes na África, onde a adesão a correntes neopentecostais têm crescido intensamente últimas décadas. A maior igreja brasileira no continente é a Universal, presente em 23 dos 55 países africanos.
O continente também é cobiçado por várias organizações missionárias brasileiras, entre as quais a Gideões Missionários da Última Hora, que tem operações em 11 países africanos e recebeu Bolsonaro em seu último congresso, em maio. Em seu site, o grupo descreve a África como o “continente mais perigoso do mundo”, onde busca “levar a mensagem de salvação a um povo perdido, sem esperança e que não conhece a Jesus Cristo”.
Caminho desimpedido
A viagem à África na companhia de congressistas evangélicos foi o último de uma série de acenos de Ernesto Araújo à bancada religiosa. Em junho, ele recebeu o grupo no Itamaraty para um “Diálogo sobre Política Externa com Parlamentares Evangélicos” e, em dezembro, participou da Conferência Nacional da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional.
Direito de imagemMARCO FELICIANO-DIVULGAÇÃOImage caption
Diplomatas que não quiseram ser identificados disseram à BBC News Brasil que a África é a região do globo onde os evangélicos exercem mais influência na política externa brasileira hoje, pois a agenda do grupo no continente não se choca com a de outras alas relevantes do governo.
Os evangélicos também têm grande interesse em relação a Israel e vêm pressionando o governo a transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. Mas a medida é rejeitada por outro setor influente no governo, o agronegócio, que até agora conseguiu barrar a iniciativa.
A influência religiosa na política externa também se nota na nova postura do Brasil em órgãos internacionais. Em uma conferência da ONU em março, o governo brasileiro se posicionou contra a citação ao direito ao acesso universal a serviços de saúde reprodutiva e sexual em um documento por entender que as expressões poderiam dar margem à “promoção do aborto”.
Em outra conferência, na Hungria, em novembro, o secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania do Itamaraty, Fabio Mendes Marzano, defendeu que “liberdade religiosa não é somente o direito de praticar uma religião, mas o direito de se manifestar, debater e defender a fé, e mesmo de tentar converter aqueles que não têm uma religião”.
Marzano discursou em um evento contra a perseguição de cristãos, bandeira promovida pelo presidente americano, Donald Trump, e abraçada pela atual gestão do Itamaraty.
Segundo o secretário, a conversão de não crentes não pode ser feita “pela força, mas lhes mostrando a verdade, a verdade real”.
Questionado pela BBC News Brasil sobre o que seria essa “verdade real”, o Itamaraty não respondeu. Em nota, o órgão disse apenas que o “Estado é laico, mas não é ateu”. “O Brasil é país majoritariamente cristão e a defesa das minorias cristãs no mundo é parte essencial do interesse nacional”, afirmou o ministério.
Aliança Itamaraty – Igreja Universal
Outros sinais de convergência entre a agenda evangélica e o Itamaraty foram emitidos nos últimos meses, quando a Igreja Universal se envolveu em conflitos em Angola e São Tomé e Príncipe, duas ex-colônias portuguesas no oeste africano onde a denominação tem presença relevante.
Em São Tomé e Príncipe, um levante popular no início de novembro provocou a depredação de vários templos da Universal e a morte de um adolescente. A crise foi desencadeada pela prisão de um pastor são-tomense a quem foram atribuídas denúncias de abusos da Universal contra funcionários africanos.
Direito de imagemREPUBLICANOSImage caption
Semanas depois, um grupo de pastores da Universal em Angola rompeu os laços com a liderança brasileira da igreja, acusando-a de desviar recursos para o exterior, discriminar funcionários locais e promover a esterilização de sacerdotes africanos. O grupo, que diz ter o apoio de 330 pastores e bispos angolanos da Universal, pediu a expulsão de sacerdotes brasileiros para que a igreja passasse a ser liderada exclusivamente por angolanos.
Nos dois episódios, a Universal repudiou as acusações e disse ser vítima de campanhas de difamação. Nos dois episódios, o Itamaraty reforçou a defesa da igreja.
No auge da crise em São Tomé e Príncipe, o embaixador brasileiro no país interrompeu as férias para tentar apaziguar os ânimos de congressistas são-tomenses, que ameaçavam cassar a licença de operação da igreja.
E, na visita recente a Angola, o ministro Ernesto Araújo deu uma entrevista à rede portuguesa RTP na qual elogiou a Universal e defendeu a atuação da igreja no exterior.
Segundo Araújo, a igreja “fez a diferença para melhor” para milhões de pessoas e é “uma entidade extremamente importante no Brasil”. Questionado sobre o processo judicial que a Universal enfrenta em Angola, disse não querer “interferir em eventuais investigações, apenas acompanhar a situação para que no quadro normativo e legal angolano haja um tratamento equitativo da igreja”.
O diplomata da Universal para a África
A agenda política da Universal na África é liderada pelo deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA). Bispo da igreja, Marinho viajou a São Tomé e Príncipe durante a crise recente e acompanhou Ernesto Araújo no giro africano.
Negro e no quarto mandato como deputado federal, ele preside os grupos parlamentares de amizade com Angola, Cabo Verde e Moçambique e é hoje o principal interlocutor do Congresso brasileiro com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em cujos encontros esteve duas vezes só neste ano.
Boa parte de sua atuação no Congresso diz respeito a temas africanos. Em 2013, por exemplo, ele propôs ao Itamaraty que negociasse com a União Africana a instalação de uma missão diplomática da organização no Brasil. Na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Marinho foi o relator de uma série de projetos de cooperação entre o Brasil e países africanos, entre os quais Angola, Benin, Moçambique e Etiópia.
Atuante nos bastidores, o deputado evita se pronunciar publicamente sobre sua atuação em relação à África. Desde o início novembro, a BBC News Brasil lhe enviou vários pedidos de entrevista sobre o tema, mas não foi atendida.
Direito de imagemRICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULAImage caption
‘Simbiose sem precedentes’
Para o cientista político Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), hoje baseado no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, a investida evangélica na política externa brasileira não é nova, mas atingiu no governo Bolsonaro uma “simbiose sem precedentes”.
“Antes havia uma relação de interesse (entre evangélicos e o Itamaraty), mas também de conflitos”, diz Alencastro, especialista em política africana.
Ele afirma que gestões anteriores fizeram concessões ao grupo — como a entrega de passaportes diplomáticos a líderes religiosos —, mas tinham o cuidado de não se vincular com a ação de igrejas brasileiras no exterior.
Para Alencastro, a nova postura do governo potencializa situações de conflito. “A próxima crise com uma igreja evangélica brasileira na África será uma crise do Brasil, porque o Brasil se tornará indissociável das igrejas”, afirma o pesquisador.
A próxima crise com uma igreja evangélica brasileira na África será uma crise do Brasil, porque o Brasil se tornará indissociável das igrejas